Contos de Ernane Martins

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Do outro lado

Do Outro Lado é um conto meu, Ernane Martins, autor do blog. É uma história interessante sobre uma moça misteriosa que confessa ao padre que traiu o marido. Aí o padre procura descobrir quem é ela e depois ele pensa seriamente em quebrar o voto de silêncio e contar a traição ao marido .

Do outro lado

  Parecia mais um dia comum para o padre Ambrósio. Ao realizar a missa da manhã, como era rotineiro, foi para o confessionário ouvir os pecados dos fiéis e dar as penitências e as absolvições. Então, quando pensou que não havia mais ninguém para escutar, uma moça chegou repentinamente.
– Padre, eu pequei – ela estava aflita, sua voz era trêmula. – Eu cometi um grande pecado, padre. Um pecado que me envergonha...
– Diga, minha filha, qual foi o seu pecado?
Ao olhar pela janela do confessionário, em meio aos furinhos da tela, o padre não reconheceu quem era a pessoa com quem conversava. Ela se mantinha de perfil, os cabelos cobriam quase todo o rosto.
– Eu traí o meu marido... – confessou ela, demonstrando-se culpada. – Ele é um homem bom e honesto, daqueles que não se encontra em qualquer esquina, e isso me faz sentir um lixo.
– Por que você o traiu?
– Não sei por que fiz isso. Eu fui ao Centro com uma amiga. Então nós entramos numa loja e nos encontramos com uma parenta dela. Elas começaram a conversar. A conversa delas não chegava ao fim. Eu fiquei impaciente, queria entrar em outras lojas. Decidi, então, ir sozinha. Eu e minha amiga marcamos para nos encontrar na esquina da rua do shopping, daqui a uma hora, para voltarmos juntas para casa... Uma hora depois, eu a esperava na esquina, e nada dela aparecer. Então, ele apareceu...
– O seu amante... – supôs o padre, que dava mostras de cansaço por estar preso por tanto tempo dentro do confessionário.

– Não, padre, eu nem o conhecia. Sem perceber, eu estava parada no ponto onde as prostitutas fazem programa à noite... O homem me perguntou o meu preço. Eu demorei a entender do que se tratava. Ele estava me confundindo com uma das prostitutas... Você agora deve estar pensando: Ela entrou em lojas, deve ter comprado algo, estava com sacolas nas mãos e não tinha como ser confundida. Eu não levei dinheiro naquele dia. Só apreciei as roupas. Não comprei nada. Usava uma saia curta, pois estava muito calor, e acho que exagerei no vermelho do batom... Com o meu silêncio, o homem me fez uma oferta. Era o dobro do dinheiro que eu precisava para comprar aquele vestido que gostei momentos atrás... Não sei o que deu em mim, mas aceitei, padre.
Arrependida, ela caiu no choro. Mas o silêncio que predominou dentro do confessionário assustou a moça. Ela percebeu que não estava preparada para ouvir do padre críticas severas sobre o seu comportamento, notá-lo invocar o nome de Deus e dizer que ela era uma safada, sem-vergonha, devassa. Com medo e envergonhada, ela saiu correndo da igreja antes que o padre pudesse descobrir quem era ela.
Claro que o padre estava acostumado a ouvir confissões de homem que trai a mulher e vice-versa. Mas com o enredo que ele tinha acabado de escutar não era muito comum. Ficou calado por alguns instantes porque ainda tentava digerir a história. Não era fácil para ele aceitar e compreender que uma moça que jura fidelidade traia o marido por causa de uma peça de roupa.
Dias depois, na lateral da capelinha de madeira onde o padre se assenta e ouvi os fiéis se confessar, repetindo o mesmo procedimento da primeira vez, a moça misteriosa reapareceu.
– Perdoa-me por ter fugido do senhor, padre. Foi mais forte do que eu.
– Te perdoo, minha filha... Agora me diga: qual é o seu nome?
– Desculpe-me, padre, mas não posso revelar.
– Diga, minha filha, Deus quer saber o seu nome. Você é daqui da igreja?
– Sim, padre. Mas não vamos falar disso agora, por favor. O que eu quero te revelar é que voltei a pecar. Fui levada de novo pela tentação do dinheiro. Padre, eu parei no mesmo lugar que te falei da outra vez, vestida com roupas vulgares. Fui assediada por outro homem e transei com ele.
Desta vez, ela não recorreu à fuga para escapar do julgamento forte e sem muita delicadeza do padre Ambrósio. Mas depois das críticas que ela entendia que merecia ouvir, o padre abriu caminho para o perdão. Ela prometeu cumprir certos atos de penitência para reparar o dano causado pelo pecado. Comprometeu-se a não praticar o mesmo erro e viver a vida o mais perto possível do evangelho.
O padre estava satisfeito por ela se reconhecer como uma pecadora, uma mulher falha e necessitada da graça de Deus, e por concordar em abandonar essa “vida fácil”. Mas o que ele mais ambicionava descobrir era a identidade da misteriosa mulher que havia cometido tamanho pecado. Novamente, ela permaneceu o tempo todo de lado, encobrindo o rosto com os cabelos.
Ele tentou fazer o mínimo de barulho possível para sair de dentro do confessionário. Mas o padre era um homem de 60 anos e não tinha mais o equilíbrio e explosão física de sua juventude. Deu dicas para ela desconfiar do que pretendia fazer. Quando saiu da capelinha, só conseguiu ver o vulto dela deixando a igreja pela porta lateral.
Por que manter uma áurea de mistério sobre a identidade de sua pessoa depois de relatar o seu pecado mais grave? Ela sabia que os segredos do confessionário não podem ser contados a ninguém. Só se ela tinha algo a mais a esconder. O que podia motivar o anonimato? O padre não conseguia encontrar a resposta. Porém suspeitava cada vez mais de que havia caroço nesse angu.
No domingo, ele pregou o evangelho sem parar de pensar a respeito sobre quem, entre essas moças que assistiam à missa, seria aquela que tinha traído o marido. Por causa da sua longa experiência, ele tinha quase certeza que ela voltaria a procurá-lo naquela manhã, dizendo se tinha cumprido ou não os atos que o confessor havia imposto à fiel.
Quando supostamente a última senhora da fila terminou de se confessar, o padre perguntou se havia alguma moça por perto, à espreita ou sentada em algum dos bancos da igreja. A senhora, tendo vasculhado rapidamente a área sugerida pelo padre, disse que sim. Ele agradeceu a ajuda e permitiu que ela fosse embora.
Segundos depois, o padre deixou o confessionário. No corredor, flagrou Júlia se aproximando. Depois da surpresa, ele a olhou com raiva, reprovação e desapontamento, quase convencido de que era ela a enigmática mulher que enganava o marido, faltando apenas escutar uma palavrinha de confirmação para dissipar qualquer dúvida.
Mas Júlia não disse nem um A, pois, nervosa e assustada, deu meia-volta e seguiu apressadamente rumo à saída, sem dar ouvidos aos chamados do padre.
Dentre as moças que frequentavam a igreja, Júlia nem entrava na lista das suspeitas que poderiam ter cometido adultério. Ela praticamente fora criada debaixo da batina dele e era exemplo de ética e de moralidade. Era benquista pela comunidade, estava habituada a receber elogios, falar mal dela era quase que uma heresia.
Causava desgosto e inconformismo para o padre que ela tivesse cometido deslizes e emporcalhado o manto sagrado do matrimônio. E será que ela parou de pecar conforme havia prometido? Como conhecer a verdade, se Júlia não voltou mais à igreja depois de ter sua identidade desvendada?
Certo dia, o padre Ambrósio deu uma de detetive; seguiu Júlia. Ele estava à paisana, sem a batina.
Perdeu-a de vista bem próximo de uma boate de strip-tease. Ele pediu perdão a Deus por ingressar naquele antro, mas eram ossos do ofício. Lá dentro, enojou-se com aquele ambiente de devassidão e imoralidade, com mulheres tirando a roupa e se prostituindo. “Só um homem sem Deus frequentaria este lugar”, imaginou. Procurou por Júlia, mas nada de encontrá-la.
Passou um tempo, e Júlia não apareceu rebolando no palco ou perambulando seminua à caça de clientes. Então, num certo instante, ele começou a duvidar de tê-la visto entrar ali. Durante o tempo em que a esteve seguindo, permanecera distante, e pode ser que, num momento de distração, tivesse se enganado ao achar que ela adentrara aquele lugar. Assim se explicaria a razão pela qual ela não havia sido encontrada.
Ele se distraiu um pouco e, ao sentar à mesa para colocar as ideias em ordem, uma mulher veio oferecer algumas horas de sexo selvagem.
– Sai, Satanás! Em nome de Jesus, saia daqui! – disse o padre, espantando a mulher.
Em seguida, ele aproximou-se do balcão do bar e perguntou ao barman se conhecia uma tal de Júlia, descreveu-a. O barman disse que não, nunca a vira ali, mas lhe sugeriu que se saciasse com outra prostituta. Nesse momento, o limite do padre chegou ao fim. Não suportava mais ver tantas pessoas pecando e praticando as coisas que ele mais abominava na vida. Subitamente, sentiu-se mal e percebeu que, se não saísse o quanto antes daquele antro, teria um treco.
Chegando à rua, começou a se sentir melhor. Parece que saíra do inferno e fez uma escala no purgatório. Pensou em ir para o céu, mas achou por bem esperar um pouco mais antes de seguir para lá. Não havia dissipado todas as dúvidas. Precisava saber se Júlia adentrara aquele local para trair o marido.
O padre prosseguiu com a investigação. De repente, depois de algumas horas, Júlia surgiu. Ele não havia observado, ao certo, de que direção ela veio, pois os olhos estavam abaixados um pouco antes, mas a avistou próxima da boate, indo a caminho de casa. Convenceu-se de que ela saíra de dentro daquele pecaminoso recinto. Concluiu que Júlia tinha perdido todos os escrúpulos e se transformado numa mulher da vida, deixando de lado os compromissos assumidos com Deus e com um dos representantes Dele aqui na terra.
A igreja católica excomunga qualquer sacerdote que revele o que foi dito em confissão. Isso quer dizer que o padre Ambrósio não podia contar sobre a infidelidade de Júlia ao marido, por mais vontade que tivesse de abrir a boca. Mas não era certo, digno e nem justo que Rodolfo continuasse a ser enganado por sua esposa devassa e pecadora, ainda mais na situação em que ele se encontrava. O padre não podia violar o sigilo do confessionário, mas a igreja e a bíblia não o impediam de contar a Rodolfo que Júlia tinha sido vista saindo de um recinto pecaminoso. Desse jeito, Rodolfo chegaria à conclusão óbvia de que a esposa o traía, e o padre não estaria quebrando nenhuma regra.
Numa tarde ensolarada, padre Ambrósio chegou à casa de Rodolfo, que ficou surpreso ao vê-lo. Fazia um bom tempo que eles não se encontravam. Recebeu o convite para entrar e acompanhá-lo até a sala. Seguiu-o sem conseguir conter a pena que sentia ao assisti-lo arrastando a cadeira de rodas.
– O que faz aqui, padre?
– Eu vim saber de você. Como anda? Por que nunca mais foi à igreja, meu filho?
– Acho que Deus não gosta muito de mim. Ele me deixou vivo neste estado de inutilidade.
– Deus te ama e quer o seu bem, meu filho.
– Creio que a única pessoa que quer meu bem e me ama é Júlia.
– Júlia?! – exclamou o padre com certa contrariedade – A sua mulher?!
– Sim, ela mesma – respondeu Rodolfo, orgulhosamente. – Você não imagina a barra que ela tem segurado nos últimos tempos. Eu desconto tudo que sinto pelo que me aconteceu em cima dela, e ela vem sempre com belas palavras para me consolar. Que mulher fantástica! Outra no seu lugar já teria me abandonado. Mas ela não é igual às outras. Permanece firme e forte ao meu lado. Eu não sei o que seria de mim se não fosse ela... Ela é a razão da minha existência. Se eu não a tivesse, por estar preso nesta cadeira de rodas, preferiria a morte.
Rodolfo era uma pessoa triste e amargurada. Imagina o que aconteceria com ele se soubesse que sua pedra preciosa passara a não valer mais nem um vintém. Depressão profunda e falta de sentido na vida são os primeiros pensamentos que vêm à mente. Por outro lado, o silêncio e a omissão fariam com que o padre se tornasse cúmplice de uma pecadora que se deita com vários homens em troca de alguns reais. O que seria melhor, meu Deus? Servir a um propósito honesto, fazendo-o conhecer os erros da esposa? Ou fingir que não sabia de nada para poupá-lo de ser atingido por um sofrimento gigantesco?
Enquanto decidia se ia ou não contar o que sabia a Rodolfo, Júlia chegou em casa. Ela ficou admirada ao ver o padre dialogando com o marido. Quando surgiu a oportunidade, chamou-o para uma conversa a sós.
– O que faz aqui, padre?
– Eu vim te denunciar ao teu marido. A tua devassidão não pode ficar impune.
– Você não pode fazer isso. Ele depende de mim e eu dele.
– Pensasse isso quando era uma mulher direita!
– Eu sou uma mulher direita! Até agora eu não sei do que o senhor está me acusando.
– Deixa de ser cínica, menina – indignou-se o padre. – Você me confessou duas vezes que traiu o marido.
– Você deve estar enganado, padre. Faz um bom tempo que eu não me confesso. Deus é minha testemunha. Vivo única e exclusivamente para o meu marido. O senhor me conhece desde criança e sabe que não sou nenhuma vagabunda que fica por aí traindo o marido.
– Não adianta mentir, Júlia. Eu te segui sexta-feira passada, à tarde, e te vi entrando num prostíbulo, na Rua Afonso Buaz. Não tente me fazer de bobo.
– Tem certeza, padre, que me viu entrar naquele lugar? Eu te juro que nunca entrei ali. Passei pela frente sim, mas aonde entrei foi na pequena fábrica ao lado, para uma entrevista de emprego. Infelizmente não o consegui. A situação aqui em casa está difícil e não dá pra viver apenas com o salário de invalidez do meu marido. O senhor deve ter visto mal, eu saí da fábrica, que é vizinha da boate. Os dois locais são muito próximos e o senhor se enganou ao achar que eu saí de um lugar, mas, na verdade, eu saí de outro.
– E o que você me diz a respeito de ter fugido de mim naquele dia, na igreja?
– Eu seguia para conversar com o senhor, mas você me olhou como se eu tivesse cometido um crime gravíssimo. Tive medo do que o senhor me diria e fugi. Como o senhor não me procurou, eu achei que tinha tido uma impressão errada e fiquei morta de vergonha pela atitude que tomei. Faltou coragem para voltar a falar com o senhor e lhe pedir desculpas.
As explicações de Júlia encheram de dúvida a cabeça do padre Ambrósio. Ele não sabia mais se Júlia era a mulher que o procurara para confessar que tinha traído o marido. Quando estava dentro do confessionário, ele não havia visto o rosto da infiel. Não conseguia distinguir se a voz dela e de Júlia eram idênticas. Retinha na memória o cabelo escuro, mais ou menos a altura, o porte físico, as roupas da jovem que havia fugido dele para não ser reconhecida. Mas essas características eram tão fáceis de serem encontradas nas moças do bairro quanto os postes de iluminação pública.
Ele não possuía provas de que Júlia se prostituía. Concordou que era possível ela ter entrado e saído da fábrica e não da boate, pois não a vira fazendo uma coisa nem outra. Concluiu que podia ser verdadeira a desculpa que ela arranjara para ter dado meia-volta e partido da igreja quando eles se encontraram no corredor que leva ao confessionário.
Preferiu acreditar na versão apresentada por Júlia do que voltar a dar uma de detetive e ir à empresa que ela disse que foi procurar emprego. Vai que ela nunca tivesse colocado os pés naquele local. Assim se confirmaria à hipótese de que ela tinha ido à boate e se transformado numa prostituta. Melhor era dar o assunto por encerrado, parar de se importar com a vida de Júlia e Rodolfo, esquecer tudo o que imaginara a respeito de uma mulher batalhadora e que cuidava com paixão do marido paraplégico.



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