Do Outro Lado é um conto meu, Ernane Martins, autor do blog. É uma história interessante sobre uma moça misteriosa que confessa ao padre que traiu o marido. Aí o padre procura descobrir quem é ela e depois ele pensa seriamente em quebrar o voto de silêncio e contar a traição ao marido .
Do outro lado
Parecia mais um dia comum para o padre Ambrósio. Ao realizar a
missa da manhã, como era rotineiro, foi para o confessionário ouvir
os pecados dos fiéis e dar as penitências e as absolvições.
Então, quando pensou que não havia mais ninguém para escutar, uma
moça chegou repentinamente.
– Padre, eu pequei – ela estava aflita, sua voz era trêmula. –
Eu cometi um grande pecado, padre. Um pecado que me envergonha...
– Diga, minha filha, qual foi o seu pecado?
Ao olhar pela janela do confessionário, em meio aos furinhos da
tela, o padre não reconheceu quem era a pessoa com quem conversava.
Ela se mantinha de perfil, os cabelos cobriam quase todo o rosto.
– Eu traí o meu marido... – confessou ela, demonstrando-se
culpada. – Ele é um homem bom e honesto, daqueles que não se
encontra em qualquer esquina, e isso me faz sentir um lixo.
– Por que você o traiu?
– Não sei por que fiz isso. Eu fui ao Centro com uma amiga. Então
nós entramos numa loja e nos encontramos com uma parenta dela. Elas
começaram a conversar. A conversa delas não chegava ao fim. Eu
fiquei impaciente, queria entrar em outras lojas. Decidi, então, ir
sozinha. Eu e minha amiga marcamos para nos encontrar na esquina da
rua do shopping, daqui a uma hora, para voltarmos juntas para casa...
Uma hora depois, eu a esperava na esquina, e nada dela aparecer.
Então, ele apareceu...
– O seu amante... – supôs o padre, que dava mostras de cansaço
por estar preso por tanto tempo dentro do confessionário.
– Não, padre, eu nem o conhecia. Sem perceber, eu estava parada no
ponto onde as prostitutas fazem programa à noite... O homem me
perguntou o meu preço. Eu demorei a entender do que se tratava. Ele
estava me confundindo com uma das prostitutas... Você agora deve
estar pensando: Ela entrou em lojas, deve ter comprado algo, estava
com sacolas nas mãos e não tinha como ser confundida. Eu não levei
dinheiro naquele dia. Só apreciei as roupas. Não comprei nada.
Usava uma saia curta, pois estava muito calor, e acho que exagerei no
vermelho do batom... Com o meu silêncio, o homem me fez uma oferta.
Era o dobro do dinheiro que eu precisava para comprar aquele vestido
que gostei momentos atrás... Não sei o que deu em mim, mas aceitei,
padre.
Arrependida, ela caiu no choro. Mas o silêncio que predominou dentro
do confessionário assustou a moça. Ela percebeu que não estava
preparada para ouvir do padre críticas severas sobre o seu
comportamento, notá-lo invocar o nome de Deus e dizer que ela era
uma safada, sem-vergonha, devassa. Com medo e envergonhada, ela saiu
correndo da igreja antes que o padre pudesse descobrir quem era ela.
Claro que o padre estava acostumado a ouvir confissões de homem que
trai a mulher e vice-versa. Mas com o enredo que ele tinha acabado de
escutar não era muito comum. Ficou calado por alguns instantes
porque ainda tentava digerir a história. Não era fácil para ele
aceitar e compreender que uma moça que jura fidelidade traia o
marido por causa de uma peça de roupa.
Dias depois, na lateral da capelinha de madeira onde o padre se
assenta e ouvi os fiéis se confessar, repetindo o mesmo procedimento
da primeira vez, a moça misteriosa reapareceu.
– Perdoa-me por ter fugido do senhor, padre. Foi mais forte do que
eu.
– Te perdoo, minha filha... Agora me diga: qual é o seu nome?
– Desculpe-me, padre, mas não posso revelar.
– Diga, minha filha, Deus quer saber o seu nome. Você é daqui da
igreja?
– Sim, padre. Mas não vamos falar disso agora, por favor. O que eu
quero te revelar é que voltei a pecar. Fui levada de novo pela
tentação do dinheiro. Padre, eu parei no mesmo lugar que te falei
da outra vez, vestida com roupas vulgares. Fui assediada por outro
homem e transei com ele.
Desta vez, ela não recorreu à fuga para escapar do julgamento forte
e sem muita delicadeza do padre Ambrósio. Mas depois das críticas
que ela entendia que merecia ouvir, o padre abriu caminho para o
perdão. Ela prometeu cumprir certos atos de penitência para reparar
o dano causado pelo pecado. Comprometeu-se a não praticar o mesmo
erro e viver a vida o mais perto possível do evangelho.
O padre estava satisfeito por ela se reconhecer como uma pecadora,
uma mulher falha e necessitada da graça de Deus, e por concordar em
abandonar essa “vida fácil”. Mas o que ele mais ambicionava
descobrir era a identidade da misteriosa mulher que havia cometido
tamanho pecado. Novamente, ela permaneceu o tempo todo de lado,
encobrindo o rosto com os cabelos.
Ele tentou fazer o mínimo de barulho possível para sair de dentro
do confessionário. Mas o padre era um homem de 60 anos e não tinha
mais o equilíbrio e explosão física de sua juventude. Deu dicas
para ela desconfiar do que pretendia fazer. Quando saiu da capelinha,
só conseguiu ver o vulto dela deixando a igreja pela porta lateral.
Por que manter uma áurea de mistério sobre a identidade de sua
pessoa depois de relatar o seu pecado mais grave? Ela sabia que os
segredos do confessionário não podem ser contados a ninguém. Só
se ela tinha algo a mais a esconder. O que podia motivar o anonimato?
O padre não conseguia encontrar a resposta. Porém suspeitava cada
vez mais de que havia caroço nesse angu.
No domingo, ele pregou o evangelho sem parar de pensar a respeito
sobre quem, entre essas moças que assistiam à missa, seria aquela
que tinha traído o marido. Por causa da sua longa experiência, ele
tinha quase certeza que ela voltaria a procurá-lo naquela manhã,
dizendo se tinha cumprido ou não os atos que o confessor havia
imposto à fiel.
Quando supostamente a última senhora da fila terminou de se
confessar, o padre perguntou se havia alguma moça por perto, à
espreita ou sentada em algum dos bancos da igreja. A senhora, tendo
vasculhado rapidamente a área sugerida pelo padre, disse que sim.
Ele agradeceu a ajuda e permitiu que ela fosse embora.
Segundos depois, o padre deixou o confessionário. No corredor,
flagrou Júlia se aproximando. Depois da surpresa, ele a olhou com
raiva, reprovação e desapontamento, quase convencido de que era ela
a enigmática mulher que enganava o marido, faltando apenas escutar
uma palavrinha de confirmação para dissipar qualquer dúvida.
Mas Júlia não disse nem um A, pois, nervosa e assustada, deu
meia-volta e seguiu apressadamente rumo à saída, sem dar ouvidos
aos chamados do padre.
Dentre as moças que frequentavam a igreja, Júlia nem entrava na
lista das suspeitas que poderiam ter cometido adultério. Ela
praticamente fora criada debaixo da batina dele e era exemplo de
ética e de moralidade. Era benquista pela comunidade, estava
habituada a receber elogios, falar mal dela era quase que uma
heresia.
Causava desgosto e inconformismo para o padre que ela tivesse
cometido deslizes e emporcalhado o manto sagrado do matrimônio. E
será que ela parou de pecar conforme havia prometido? Como conhecer
a verdade, se Júlia não voltou mais à igreja depois de ter sua
identidade desvendada?
Certo dia, o padre Ambrósio deu uma de detetive; seguiu Júlia. Ele
estava à paisana, sem a batina.
Perdeu-a de vista bem próximo de uma boate de strip-tease. Ele pediu
perdão a Deus por ingressar naquele antro, mas eram ossos do ofício.
Lá dentro, enojou-se com aquele ambiente de devassidão e
imoralidade, com mulheres tirando a roupa e se prostituindo. “Só
um homem sem Deus frequentaria este lugar”, imaginou. Procurou por
Júlia, mas nada de encontrá-la.
Passou um tempo, e Júlia não apareceu rebolando no palco ou
perambulando seminua à caça de clientes. Então, num certo
instante, ele começou a duvidar de tê-la visto entrar ali. Durante
o tempo em que a esteve seguindo, permanecera distante, e pode ser
que, num momento de distração, tivesse se enganado ao achar que ela
adentrara aquele lugar. Assim se explicaria a razão pela qual ela
não havia sido encontrada.
Ele se distraiu um pouco e, ao sentar à mesa para colocar as ideias
em ordem, uma mulher veio oferecer algumas horas de sexo selvagem.
– Sai, Satanás! Em nome de Jesus, saia daqui! – disse o padre,
espantando a mulher.
Em seguida, ele aproximou-se do balcão do bar e perguntou ao barman
se conhecia uma tal de Júlia, descreveu-a. O barman disse que não,
nunca a vira ali, mas lhe sugeriu que se saciasse com outra
prostituta. Nesse momento, o limite do padre chegou ao fim. Não
suportava mais ver tantas pessoas pecando e praticando as coisas que
ele mais abominava na vida. Subitamente, sentiu-se mal e percebeu
que, se não saísse o quanto antes daquele antro, teria um treco.
Chegando à rua, começou a se sentir melhor. Parece que saíra do
inferno e fez uma escala no purgatório. Pensou em ir para o céu,
mas achou por bem esperar um pouco mais antes de seguir para lá. Não
havia dissipado todas as dúvidas. Precisava saber se Júlia
adentrara aquele local para trair o marido.
O padre prosseguiu com a investigação. De repente, depois de
algumas horas, Júlia surgiu. Ele não havia observado, ao certo, de
que direção ela veio, pois os olhos estavam abaixados um pouco
antes, mas a avistou próxima da boate, indo a caminho de casa.
Convenceu-se de que ela saíra de dentro daquele pecaminoso recinto.
Concluiu que Júlia tinha perdido todos os escrúpulos e se
transformado numa mulher da vida, deixando de lado os compromissos
assumidos com Deus e com um dos representantes Dele aqui na terra.
A igreja católica excomunga qualquer sacerdote que revele o que foi
dito em confissão. Isso quer dizer que o padre Ambrósio não podia
contar sobre a infidelidade de Júlia ao marido, por mais vontade que
tivesse de abrir a boca. Mas não era certo, digno e nem justo que
Rodolfo continuasse a ser enganado por sua esposa devassa e pecadora,
ainda mais na situação em que ele se encontrava. O padre não podia
violar o sigilo do confessionário, mas a igreja e a bíblia não o
impediam de contar a Rodolfo que Júlia tinha sido vista saindo de um
recinto pecaminoso. Desse jeito, Rodolfo chegaria à conclusão óbvia
de que a esposa o traía, e o padre não estaria quebrando nenhuma
regra.
Numa tarde ensolarada, padre Ambrósio chegou à casa de Rodolfo, que
ficou surpreso ao vê-lo. Fazia um bom tempo que eles não se
encontravam. Recebeu o convite para entrar e acompanhá-lo até a
sala. Seguiu-o sem conseguir conter a pena que sentia ao assisti-lo
arrastando a cadeira de rodas.
– O que faz aqui, padre?
– Eu vim saber de você. Como anda? Por que nunca mais foi à
igreja, meu filho?
– Acho que Deus não gosta muito de mim. Ele me deixou vivo neste
estado de inutilidade.
– Deus te ama e quer o seu bem, meu filho.
– Creio que a única pessoa que quer meu bem e me ama é Júlia.
– Júlia?! – exclamou o padre com certa contrariedade – A sua
mulher?!
– Sim, ela mesma – respondeu Rodolfo, orgulhosamente. – Você
não imagina a barra que ela tem segurado nos últimos tempos. Eu
desconto tudo que sinto pelo que me aconteceu em cima dela, e ela vem
sempre com belas palavras para me consolar. Que mulher fantástica!
Outra no seu lugar já teria me abandonado. Mas ela não é igual às
outras. Permanece firme e forte ao meu lado. Eu não sei o que seria
de mim se não fosse ela... Ela é a razão da minha existência. Se
eu não a tivesse, por estar preso nesta cadeira de rodas, preferiria
a morte.
Rodolfo era uma pessoa triste e amargurada. Imagina o que
aconteceria com ele se soubesse que sua pedra preciosa passara a não
valer mais nem um vintém. Depressão profunda e falta de sentido na
vida são os primeiros pensamentos que vêm à mente. Por outro lado,
o silêncio e a omissão fariam com que o padre se tornasse cúmplice
de uma pecadora que se deita com vários homens em troca de alguns
reais. O que seria melhor, meu Deus? Servir a um propósito honesto,
fazendo-o conhecer os erros da esposa? Ou fingir que não sabia de
nada para poupá-lo de ser atingido por um sofrimento gigantesco?
Enquanto decidia se ia ou não contar o que sabia a Rodolfo, Júlia
chegou em casa. Ela ficou admirada ao ver o padre dialogando com o
marido. Quando surgiu a oportunidade, chamou-o para uma conversa a
sós.
– O que faz aqui, padre?
– Eu vim te denunciar ao teu marido. A tua devassidão não pode
ficar impune.
– Você não pode fazer isso. Ele depende de mim e eu dele.
– Pensasse isso quando era uma mulher direita!
– Eu sou uma mulher direita! Até agora eu não sei do que o senhor
está me acusando.
– Deixa de ser cínica, menina – indignou-se o padre. – Você
me confessou duas vezes que traiu o marido.
– Você deve estar enganado, padre. Faz um bom tempo que eu não me
confesso. Deus é minha testemunha. Vivo única e exclusivamente para
o meu marido. O senhor me conhece desde criança e sabe que não sou
nenhuma vagabunda que fica por aí traindo o marido.
– Não adianta mentir, Júlia. Eu te segui sexta-feira passada, à
tarde, e te vi entrando num prostíbulo, na Rua Afonso Buaz. Não
tente me fazer de bobo.
– Tem certeza, padre, que me viu entrar naquele lugar? Eu te juro
que nunca entrei ali. Passei pela frente sim, mas aonde entrei foi na
pequena fábrica ao lado, para uma entrevista de emprego.
Infelizmente não o consegui. A situação aqui em casa está difícil
e não dá pra viver apenas com o salário de invalidez do meu
marido. O senhor deve ter visto mal, eu saí da fábrica, que é
vizinha da boate. Os dois locais são muito próximos e o senhor se
enganou ao achar que eu saí de um lugar, mas, na verdade, eu saí de
outro.
– E o que você me diz a respeito de ter fugido de mim naquele dia,
na igreja?
– Eu seguia para conversar com o senhor, mas você me olhou como se
eu tivesse cometido um crime gravíssimo. Tive medo do que o senhor
me diria e fugi. Como o senhor não me procurou, eu achei que tinha
tido uma impressão errada e fiquei morta de vergonha pela atitude
que tomei. Faltou coragem para voltar a falar com o senhor e lhe
pedir desculpas.
As explicações de Júlia encheram de dúvida a cabeça do padre
Ambrósio. Ele não sabia mais se Júlia era a mulher que o procurara
para confessar que tinha traído o marido. Quando estava dentro do
confessionário, ele não havia visto o rosto da infiel. Não
conseguia distinguir se a voz dela e de Júlia eram idênticas.
Retinha na memória o cabelo escuro, mais ou menos a altura, o porte
físico, as roupas da jovem que havia fugido dele para não ser
reconhecida. Mas essas características eram tão fáceis de serem
encontradas nas moças do bairro quanto os postes de iluminação
pública.
Ele não possuía provas de que Júlia se prostituía. Concordou que
era possível ela ter entrado e saído da fábrica e não da boate,
pois não a vira fazendo uma coisa nem outra. Concluiu que podia ser
verdadeira a desculpa que ela arranjara para ter dado meia-volta e
partido da igreja quando eles se encontraram no corredor que leva ao
confessionário.
Preferiu acreditar na versão apresentada por Júlia do que voltar a
dar uma de detetive e ir à empresa que ela disse que foi procurar
emprego. Vai que ela nunca tivesse colocado os pés naquele local.
Assim se confirmaria à hipótese de que ela tinha ido à boate e se
transformado numa prostituta. Melhor era dar o assunto por encerrado,
parar de se importar com a vida de Júlia e Rodolfo, esquecer tudo o
que imaginara a respeito de uma mulher batalhadora e que cuidava com
paixão do marido paraplégico.
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