Outra historinha real acontecida comigo, acho, se a memória não tiver me enganado. A Cetra. Conhecida pelos alemães de Joinville como chiloida. No Brasil ela é mais conhecida popularmente como estilingue. Essa atiradeira é responsável por meus amigos e eu termos nos metido numa enrascada, com quebra de gaiola, fuga e com risco enorme de apanharmos.
A Cetra
Eu estava assistindo desenho quando, através da janela, vi o Márcio se deslocando para o fundo do quintal com uma sacola plástica na mão. Imediatamente desliguei a tevê e fui atrás dele. A curiosidade me levou a observá-lo meio de longe. Ele começou a construir uma cetra. Finalizando o projeto, ele passou a manuseá-la, testá-la, atirar pedras num alvo como esporte.
Eu sabia que o Márcio não me deixaria brincar com a cetra se eu pedisse. Ia dizer que iria estragá-la. Porém eu era uma criança paciente e, às vezes, esperta. Uma hora ele largaria a cetra e a guardaria num lugar muito fácil de ser encontrada. Aí seria o momento de me divertir que nem ele.
No dia seguinte, pela manhã, procurei pela cetra do meu irmão. Achei dentro de um armário velho, fora de casa. Nisto, ouvi o meu nome sendo dito e gelei. Não era o Márcio me chamando atenção e me dizendo para tirar as mãos da cetra, e sim dois dos meus amigos. Que alívio! Berrei para que eles viessem ao meu encontro aqui atrás.
Ne e Vinho eram irmãos. O Ne era três anos mais velho do que o Vinho. Diferente do Márcio e eu, eles se davam bem. O Ne era uma criança valente e corajosa, não tinha temor em subir em árvores. O Vinho era uma pessoa mais calma, mais amiga.
Eu os apresentei a cetra. Eles ficaram com vontade de experimentá-la. Mas achei prudente não brincarmos com ela ali em casa, o Márcio podia nos ver e acabar com o nosso divertimento. Fomos a um matagal. Demos tiros dispersos, miramos em galhos, flores e latas. A cetra era passada de mão toda vez que a pedra atingia ou passava perto do alvo pretendido.
Mas você sabe como são as crianças, elas não ficam brincando por muito tempo no mesmo lugar. Foi o caso da gente. O matagal lá de cima do morro, alcançado pela rua de terra batida dos fundos da minha casa, logo nos cansou. Aí nós tivemos de escolher entre uma das duas alternativas: seguir na direção das nossas casas ou se afastar delas.
Descemos um pedaço do morro, com as nossas casas estando cada vez mais próximas. O Ne, que estava com a cetra na mão e que havia obtidos os melhores resultados no nosso campeonatinho de tiro ao alvo, olhou para uma casa com má intenção e me perguntou:
– Duvida acertar aquela gaiola?
– Duvido.
Eu tinha total certeza que o Ne erraria o tiro. Na nossa frente havia uma casa, e lá atrás, lá embaixo, meio longe, havia outra casa, com a gaiola pendurada, com o pássaro pulando de lá pra cá, de cá pra lá. O Ne nunca a acertaria. Era mais provável que ele acertasse em outra coisa. Mas como a distância que nos separava da casa lá de baixo era grande, achei que se ele causasse algum prejuízo a alguém, nós teríamos tempo de fugir, esconder e nos safar.
O Ne catou a pedra do chão para me mostrar que era um moleque corajoso. Esticou o elástico e lançou o projétil. O tiro foi certeiro. O som da madeira rachando e quebrando se espalhou pelas redondezas.
Foi só então que eu me dei conta que o Ne não estava se desafiando a acertar a gaiola de lá de baixo. Mas uma que se encontrava na lateral da casa que se encontrava na nossa frente, que eu só me dei conta da existência dela quando a pedra lhe atingiu.
Antes que nós pudéssemos nos arrepender do que tínhamos feito, o dono da gaiola saiu desembestado de casa. Veio em nossa direção, furioso. Nós corremos, subimos o morro. Eu fiquei um pouco para trás. Era mais lento e mais lerdo. Logo senti o homem no meu calcanhar e previ que seria pego por ele daqui alguns segundos.
Eu, Ne e Vinho pensamos em correr para o matagal. Quem sabe no meio daquele labirinto de mato e de árvores não tivéssemos a sorte de despistá-lo. Contudo eu não chegaria até lá. Estava condenado. Ele me pegaria e me daria uma surra, ou faria coisa pior.
Entretanto ele não fez nada do que imaginei, ultrapassou-me apenas. Continuou correndo atrás do Vinho e, mais adiante, do Ne, que balançava a cetra que tinha causado a destruição da gaiola do rapaz.
A atitude dele me deixou surpreso. Teve ter percebido que não eu tinha sido o autor do disparo e que seria uma injustiça me aplicar algum castigo. Ele pretendia pegar o Vinho ou o Ne. Deu-me vontade de saber o que aconteceria com meus amigos.
Eu prossegui subindo o morro, avistava-os cada vez mais distantes, até que os perdi de vista quando adentraram o matagal. Logo à frente, dando alguns passos para o interior do matagal, topei com o Vinho meio paralisado de medo. Por enquanto nada do Ne e do rapaz que estava nos perseguindo. Na companhia do meu amigo, que com a minha presença se carregou de mais coragem, nos aprofundamos no matagal. De repente, a gente se deparou com o Ne e com o dono da gaiola, que havia arrancado à cetra da mão do irmão do Vinho.
O que ele faria com a cetra? Me devolveria? Não, ele não seria tão bonzinho depois do trabalho de correr atrás da gente. Se ele não tinha a intenção de nos bater, castigaria a gente de outra forma. Qual seria a melhor opção? Acabar com a nossa brincadeira e impedir que a gente destrua outra gaiola.
Eu o vi fazendo o movimento para quebrar a cetra. Implorei para que ele não fizesse isso, disse que a cetra era do meu irmão, eu não podia estragá-la. Até chorei como último recurso. Mas ele não se comoveu com os meus apelos. Acho que ele teve mais gana de quebrar a cetra por saber que aquele ato me causaria sofrimento.
A cetra, coitada, quebrou-se em vários pedaços. Não dava para consertá-la, o dono da gaiola havia feito um excelente trabalho antes de ir embora. O Ne e o Vinho lamentaram o fato, mas não tinham como me arranjar outra cetra. Depois os dois me deixaram sozinhos, não ficaram comigo para contar ao Márcio o que havia acontecido.
Eu tinha visto o Márcio lá atrás de casa construindo a cetra, achando um galho resistente e em formado de Y. Dedicando-se a amarrar o elástico e a malha. Deixando tudo em perfeito estado de funcionamento. Menos de um dia depois já não havia cetra nenhuma.
Eu podia ficar de bico calado e fingir que não sabia de nada. Cadê a Cetra? Não sei. Mas acho que o meu nervosismo me denunciaria. Eu queria me livrar logo desse problema. Decidi contar a verdade
– Márcio, a sua cetra já era.
– O que você fez com ela?
Eu desembuchei tudo de uma vez. Falei do Ne se desafiando a acertar um alvo, do meu engano de não ter visto a gaiola da casa da frente, da pedrada a acertando em cheio, do homem nos perseguindo e da cetra sendo quebrada.
Esperei pelas broncas, ofensas e reclamações. Tive medo até de apanhar. Mas nada de ruim me aconteceu. Reparei que o Márcio estava muito mais chateado por ter perdido a cetra que tinha se dedicado a construir do que comigo. O melhor de tudo era que ele estava responsabilizando outra pessoa pela tragédia acontecida com um dos seus bens.
– Quando eu pegar o Ne ele tá fudido.
O Márcio não faria nada com ele. Era apenas raiva momentânea.
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