Contos de Ernane Martins

sábado, 8 de outubro de 2016

Tesouro de Eugênio 1ª Capítulo

Esse é o meu primeiro capítulo do  meu livro, O Tesouro de Eugênio.

Abrem-se as cortinas

Todos estavam falando que o Brasil ia sediar pela primeira vez na história a Copa do Mundo de Futebol. Um tal de Jules Rimet queria ressuscitar a competição que já tinha sido realizada em três ocasiões antes da guerra. Como a Europa estava em ruínas, o Brasil se ofereceu para sediar o evento, contanto que o torneio fosse realizado em 1950.

− Mas o que é a Copa do Mundo de Futebol? – perguntou Eugênio. 

O seu Toninho da mercearia explicou que se trata de uma competição que reúne as melhores seleções do planeta. Todos querem ganhá-la. Os jogadores atuam com raça, fibra e disposição. O país vencedor recebe uma taça de ouro e desfruta da glória de não haver no mundo uma equipe melhor que ela. 

− E o Brasil vai participar dessa competição?

− Vai sim, meu filho – respondeu Toninho com excitação. 

− Que bacana! E o Brasil tem chance de ganhar a taça de ouro?

− Muitas, meu filho! Os europeus ainda não sabem, mas aqui se pratica o melhor futebol do mundo!

Mas para fazer bonito ao sediar uma competição tão importante, o Brasil precisava construir um estádio grande, moderno e funcional. E depois de um debate acirrado para escolher o melhor local, as autoridades decidiram construir o estádio na zona norte da cidade, num terreno baldio que servia de área de lazer aos moradores da região, perto de um rio de nome Maracanã. 

− No terreno que será erguido o Estádio Municipal funcionava o Derby Club – comentou seu Castro.

− Derby Club? – perguntou Eugênio, que o ajudava na quitanda. 

− O Derby Club era uma antiga arena de corrida de cavalos. Depois a sede se mudou para a Gávea, e o terreno da Tijuca foi esquecido. Anos mais tarde, deu origem ao Jockey Club. 

− Eu nunca fui a esse tal Jockey Club – disse Eugênio meio tristonho. 

− Qualquer dia eu te levo para conhecê-lo.

Seu Castro não demorou a cumprir a promessa. Foram ao Jockey Club num domingo à tarde. Eugênio entrou no hipódromo a passos rápidos. Achou lindas as arquibancadas, principalmente a do setor social, cujos frequentadores se encontravam elegantemente trajados. Depois contemplou longamente a pista, cercada pelo verde das montanhas, tendo à direita, ao fundo, o morro do Corcovado e o Cristo Redentor. Quando as corridas começaram, ele torceu e vibrou pelo cavalo de sua preferência igual aos outros espectadores. 

Mas, passado o encantamento inicial e no intervalo de uma corrida para outra, algo lhe chamou atenção. Havia um homem operando um equipamento esquisito, às vezes colocando o olho num buraquinho e girando uma manivela ritmicamente. Eugênio se aproximou interessado em descobrir o que era aquilo. 


− Isso aqui é uma câmera cinematográfica – explicou o homem. 

− Pra que é que serve esse troço?

− Já foi ao cinema?

− Já, sim.

− As imagens que você vê no cinema são captadas com esse equipamento.

− Que legal! Sabia que já me falaram dessa caixa mágica. Mas até hoje a gente nunca tinha sido apresentado. 

Como aquele garoto já tinha ganhado a sua simpatia, não custou nada para Francisco Torquato deixá-lo examinar o equipamento de pertinho, informar por alto como ele funcionava e permitir que Eugênio desse uma espiada na pista pelo visor da câmera. 

− Eu ainda não sei nada sobre cinema. É por isso que quero trabalhar com você.

− O quê? – exclamou Francisco Torquato, surpreso. 

− Deixa eu trabalhar com você, deixa. 

− A decisão de contratar novos funcionários não cabe a mim. Eu tenho patrão igual a todo mundo. 

− Como faço para falar com esse seu patrão?

− Eu não quero desanimar você, garoto, mas dificilmente o Carvalho te dará emprego. 

− Não custa tentar. 

− Você vai perder seu tempo!

− Não faz mal. 

− Está bem – disse Torquato, lavando as mãos. – Vou te contar onde deve ir para encontrá-lo. 

O patrão de Torquato se chamava Luís Carvalho. Era dono de uma produtora, o Cinejornal Guanabara, que exibia notícias sobre o Rio de Janeiro antes do início das sessões de cinema. Tinha um apelido engraçado, Pavão, que os funcionários só mencionavam quando ele estava distante. Era comum ser acusado de produzir curtas-metragens não por amor à sétima arte, mas sim porque o negócio era lucrativo. 

E foi num certo dia, quando estava lidando com papéis relacionados ao faturamento, que ele avistou a sua secretária tentando deter, mas sem êxito, a entrada de um garoto em seu escritório luxuoso. 

− O que significa essa invasão, senhorita Silvana? Quem é essa figurinha? – perguntou Carvalho. 

− Patrão, eu disse que o senhor estava ocupado e não poderia recebê-lo, mas o garoto me ignorou. 

− Eu me chamo Eugênio. 

Eugênio esticou a mão, mas Carvalho não se deu ao trabalho de cumprimentá-lo.

− O que você quer aqui?

− Um emprego.

− Você me interrompe sem aviso prévio para me pedir um emprego?! Você está de gozação comigo? ‒ Percebendo que Eugênio falava sério, Carvalho procurou se livrar dele: ‒ Infelizmente o quadro dos funcionários está completo. Agora me dê licença, estou muito ocupado. Senhorita Silvana, faça o favor de acompanhar essa figurinha até a saída. 

Mas quem disse que Carvalho se livrou de Eugênio apenas assistindo o rebolado e o restante do corpo da secretária o levando embora! Quando acabou o expediente, Eugênio voltou a abordá-lo e refez o pedido. Na manhã e no final da tarde seguinte aconteceu o mesmo episódio. E a dose se repetiu quando jantava na Colombo, numa livraria do Leblon, numa visita ao Cristo Redentor, num passeio por Copacabana, numa confraternização reservada entre partidários e colaboradores do Governo, na hora que bebia um drinque num estabelecimento de vista para o mar…

Carvalho tinha se encontrado com Eugênio tantas vezes que já não conseguia curtir sossegado a companhia dos amigos, as horas de lazer em família e demais distrações. Tudo porque a Figurinha não parava de enchê-lo, cismou com o emprego. Não parecia entender a expressão “Não há Vagas” dita com tamanha energia e clareza. 

Foi em parte por causa dele que, alguns dias depois, Carvalho hesitou um pouco em aceitar o convite para ir com a família ao Teatro Municipal. 

Foi assim mesmo. E quando chegou ao local, antes de descer do carro, olhou um bocado de vezes pela janela para se garantir de que não seria importunado por Eugênio. Sem sinais da assombração, apressou em levar a família para o interior do teatro.

Alcançando o camarote, porém, de uma hora pra outra, começou a suspeitar que Eugênio pudesse invadir aquela área restrita e bem guardada a qualquer momento. Com o tempo, o temor desapareceu. Relaxou tanto que até cochilou durante a ópera. Só não dormiu profundamente por causa do grito agudíssimo de um dos cantores. 

Quando o espetáculo terminou, aplausos e tudo mais, Carvalho voltou a ficar tenso. Olhou amedrontado para a multidão que deixava o teatro. Unindo-se a eles, caso houvesse uma Figurinha de bom faro esperando à porta, haveria chance de sair despercebido. Porém tudo ficou só na vontade. 

Tentou se distrair conversando com amigos. O volume de pessoas que deixava o Municipal diminuiu drasticamente. Enfim enfrentou a rua, caminhou depressa em direção ao carro e ao seu chofer, carregando um dos filhos no colo. Talvez estivesse abusando da sorte, mas deu uma olhadinha pra trás. Tranquilizou-se ao não ver ninguém lhe perseguindo e se convenceu de que não teria o desprazer de se encontrar com Eugênio. 

Mas, tendo aberto a porta e acomodado a família, Carvalho escutou a voz de um garoto de 16 anos chamando pelo seu nome.

Virou-se a contragosto.

− Você parece uma mancha que não sai do meu linho irlandês – disse Carvalho, cansado e desiludido. 

Eugênio achou graça.

− Você ri ainda. Não vai me deixar em paz, não?

− Quero trabalhar pro senhor. Que mal há nisso?

− Não aguento mais você no meu pé! Meus parabéns, você venceu. Eu vou lhe dar o emprego.

− Oba!

− Já que foi o Torquato que despertou em você o interesse de trabalhar pra mim, já que é chato e teimoso, nada mais justo que você se transforme no novo assistente dele. 

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